O livre-arbítrio arbitrário que consome minha liberdade com a lembrança de me alimentar
O dia seguinte fora reproduzido por vários dias em uma rotina religiosa. Meu pai levantava cedo e sumia para o mundo. Ficávamos sem saber a hora que voltava, se comeria em casa ou na rua, se jantaria. Quando voltava, ou vinha com um mal-humor peculiar que garantia uma nova discussão entre ele e minha mãe, ou trazia uma coisa ou outra que conseguia na rua em troca de serviço: marmita pra duas pessoas, roupa para minha mãe, brinquedo velho para eu e meu irmão. Mas nossa relação estava abalada. Fora as primeiras vezes que tive meu pai como um estranho, em não poder me aproximar nem conversar. Ele vivia stressado e arrumava motivo para injuriar as pessoas, quando não conseguia trazer nada de fora de casa. Com isso eu fui amadurecendo cedo demais, e ao invés de passar o tempo todo na rua, brincando e arrumando encrenca, comecei a me virar para trazer alguma coisa pra casa, nem que essa alguma coisa beneficiasse apenas eu e meu irmão.
Saíamos cedo de casa, quase em seguida de meu pai, e andávamos para longe, ultrapassando os limites permitidos por minha mãe da rua de minha casa. Parávamos em um farol e lá ficávamos pedindo coisas: moedas, dinheiro, comida, brinquedo, qualquer coisa. Conseguíamos coisa ou outra, porque percebíamos que as pessoas não se comoviam muito com a nossa situação. O trânsito de veículos, o stress das ultrapassagens e do atraso de compromissos, garantia àquelas pessoas uma couraça dura de comoção, que fazia-os nos olhar com caras de impaciência, nos deixando, muitas vezes, até sem graça. Meu irmão, teve dias, de voltar chorando pra casa ao ouvir de um motorista:
- Não coloca essa mão suja na minha porta, macaquinho!
Nossa vontade era jogar pedra no carro, xingar o motorista, mas não fizemos nada. Fomos embora pra casa, com o pouco que conseguíamos. Se chegássemos sem fome já não tinha motivo de discussão e era só deitar e dormir. Minha mãe, muito preocupada com a situação econômica de casa, não se importava muito onde a gente ficara todo aquele tempo. Quando chegávamos exigia que tomássemos banho e que ficássemos quietos, caso meu pai estivesse em casa, porque era o dia em que ele não conseguira bico algum e não traria dinheiro pra casa.
Mas o ofício de pedinte também tinha muita concorrência. Fora difícil nos firmarmos em um único farol. Chegávamos cedo e já tinha dois, três ou quatro garotos, com roupas iguais ou piores que a nossa, pedindo esmolas e comidas no vão das janelas dos automóveis. Quando parávamos, nem sempre a recepção deles era positiva: davam tempo para irmos embora, para outra rua, porque aquele ponto era deles. Uma vez desrespeitamos o aviso. Eu, sempre magricelas e muito mais alto para minha idade, andava na frente. Meu irmão, mais troncudo e barrigudo, menor que eu, mas com bastante força, andava mais para trás. Chegamos em um farol de uma rua bastante movimentada e sentamos no meio-fio da calçada. Cerca de cinco minutos depois, avistamos chegar três garotos muito parecidos com nós. Dois menores corriam na frente sorrindo, se estapeando de brincadeira, enquanto que o mais velho, um pouco mais adulto em sua infância que os demais, ia vigilante atrás. Ao nos avistar gritou alguns dizeres, muito rápidos que eu não tive tempo de entender. Os dois menores entenderam. Ficaram os três lado a lado e eu e meu irmão de frente a eles. Disse que chegara primeiro. Disse que mentira, que eu já estava lá. Fora o suficiente para começar o quebra pau. Ele fechou a mão e acertou-me em cheio no olho esquerdo. Senti o rosto lacrimejar e já não enxergava mais nada. Meu irmão, me surpreendendo, agarrou o saco de meu agressor. Ouvi o garoto gritar. Os demais alvejavam meu irmão de socos e chutes, no rosto, nas pernas, nas costelas, e meu irmão não largava as genitais do maior. Eu, recuperando minha visão, corri em direção dos dois e consegui pegá-los pelo elástico do shorts e arremeçá-los contra a rua. Eram pequenos. Bem menores que meu irmão. Um carro freiou bruscamente, mas não evitou o atropelamento de um dos garotos. A roda esmagou-lhe o pé. O outro, assustado, correra. O motorista, ainda mais assustado, acelerou e terminou de esmagar o pé do garoto. Cruzou o farol vermelho e foi embora. O mais velho, observando o estrago de seu colega, ou irmão, deu três socos seguidos na nuca de meu irmão que desmaiou. Ele agarrou o companheiro, colocou-o nas costas e foi embora. O menino chorava muito. Percebi na rua uma grande poça de sangue. Fui ao encontro de meu irmão e seu rosto estava irreconhecível: os dois olhos estavam muito inchados e sua boca sangrava, faltando-lhe dois dentes. Coloquei-o nas costas e fomos embora daquele farol. Já formava trânsito, pois cada um que passava tirava o pé do acelerador para apreciar a briga ao vivo e contar aos seus próximos: não era todo dia que o espetáculo saía das televisões. Alguns gritavam grosserias, outros instruções.
Cheguei em casa muito mais tarde que o normal, naquele dia. Minha mãe e meu pai estavam na rua. Meu pai por dever, minha mãe por preocupação. Ao avistarem meu irmão com os olhos inchados e meu ollho roxo, meu pai foi o primeiro a se dirigir a mim:
- Olha o teu tamanho para bater no teu irmão, seu moleque!
Mal tive chances de explicar o ocorrido. Meu pai me agarrou pelos cabelos e levou minha cara ao chão, com força. Enquanto me desferia dois chutes nas costelas ao vivo, para todos da rua ver, minha mãe agarrava meu irmão e puxava meu pai pelo braço, tentando evitar a atração. Muita gente saíra para ver o que acontecia. Ninguém falara nada. A cena não era comum na nossa vizinhança. Nunca fora, mesmo acontecendo as vezes. Senti meu supercílio abrir com a pancada de cabeça no chão. Meu sangue ficou ali, manchando a passagem das pessoas na calçada. No instante em que meu pai me desferiu o primeiro chute, a pressão em minhas costelas me fez doer o estômago e esquecer da dor que sentira na cabeça. O segundo amortecera tudo. Fui pra casa chorando, com dores nas costelas, mal conseguindo respirar.
Não quebrei nada, mas a sensação de dolorido durou semanas. Não desmenti a crença de meu pai. Nem meu irmão. Para eles, tínhamos brigado um com o outro. Achei melhor assim. Se eu já tinha recebido a punição, o que adiantaria reverter aquela situação a meu favor? Aliás, se meu pai soubesse que eu e meu irmão viráramos pedintes de rua, a surra seria em dobro, para os dois. Se ele soubesse, ainda, que eu deixei que fizessem aquilo com meu irmão, a surra seria em triplo pra mim. Meu olho piorou nas semanas que seguiram. O corte no supercílio infeccionou por falta de cuidado e acabou enxendo de pus. Em poucos dias já não enxergava mais nada pelo olho machucado. A cor dele mudara também. O olho ficara branco, esbranquiçado. O outro castanho. Não liguei muito não. Na rua, era o único. Só senti que tinha que forçar mais o outro olho na hora da leitura.
O
livre-arbítrio arbitrário que consome minha liberdade com a lembrança de me
alimentar
A rua em que morávamos era muito deserta. Raras vezes
passavam carros, então ficávamos livres para fazer o que bem entendêssemos. O
bairro era tranquilo. Refletia a vida urbana de qualquer paulistano de classe média:
casas boas e grandes ao lado de casas menores, humildes; crianças na rua, mas
sob vigília das mães ou avós que a cada segundo lhes lembravam algum dever de
casa mal feito; o café da tarde servido na casa de um dos magnatas mais
endinheirados, servido pela mãe ou pela avó, para evitar que ficássemos tanto
tempo na rua. Cada dia tomávamos café na casa de um amigo diferente. Em minha
casa não íamos. Meu pai fazia ressalvas com bagunça em casa. Brincadeira só na
rua. Não queria molecada pela casa bagunçando, enquanto ele trabalhava. Minha mãe
também não tinha tempo para ficar cuidando de café pra toda a vizinhança. Ela
tomava café todo dia na casa da vizinha, Dona Inaura, que também a presenteava
com algumas coisas para o jantar, como mistura, sobremesa. Meu pai, além de
comer o que Dona Inaura dava, ainda reclamava que minha mãe ficava muito na
casa dela e dizia que aquela era uma velhota solitária sem família. Que mais
cedo ou mais tarde, iria querer mandar e
desmandar nas regras de casa. Meu pai tinha muito medo de perder o encargo que
tinha de líder da casa. Acho que por ser a única coisa que ele liderava e se
mantinha em poder. Isso o deixava confortável. Nos dar educação, garantir que não
desrespeitássemos ninguém, limitar hora de entrada e hora de saída, hora de
dormir, hora de acordar, eram para ele uma das funções que talvez lhe dava
prazer. Era, também, a única que ele fazia sem a necessidade de se preocupar se
no dia seguinte teria ou não trabalho. Nós sempre estávamos por lá. E aproveitávamos
nossa infância. Muito. Era como redescobrir mundos, tentar vivenciá-los, se
descobrir sonhando o tempo inteiro. Mesmo sem os melhores video-games, o único
que tinha um video-game decente era um de nossos vizinhos que pouco saía,
porque seus pais não deixavam ele ficar na rua e ele estudava em tempo integral,
nós usávamos da imaginação do que víamos na televisão. Aquele cubo dera muito
mote para nossas experiências infantis. Como a brincadeira do Massacre no
Bairro Japonês, que, como todas, não deu muito certo.
Já um pouco mais velho, completava meus sete anos de idade, eu tinha
responsabilidade de cuidar de meu irmão: não deixá-lo cair, não deixá-lo
chorar, não deixá-lo se machucar, não deixá-lo machucar ninguém. Quase todo dia
eu mostrava despreparo nessa atividade, e voltava pra casa com um motivo para um
cascudo ou um puxão de orelha. Meu irmão
tinha quatro anos de idade, era gordinho, troncudo de braço e perna,
extremamente briguento. Não podia ser contrariado que queria vencer o argumento
do outro na força. E toda vez que ele se esquentava com algum de nós, ele
levava a pior, porque era o mais novo. Nosso medo era quando a idade, a altura
e a força começassem a se tornar imperceptíveis.
Como estávamos de férias da escola, sobrava tempo para fazer besteira.
Éramos ao todo sete crianças e, sinceramente, não lembro o nome de nenhuma
delas. Passávamos horas organizando torneios imaginários de futebol, inventávamos
personagens, papeis de prestígio, motivos para desentendimentos e
entendimentos. Eu sempre era o maioral, gostava de ser aquele que atirava bombas
e explodia tudo, igual víamos na televisão. Por ser o mais velho da turma, dava
o mote das brincadeiras e obrigava todo mundo a aceitar de força bruta ou pelo
convencimento da palavra. Em uma tarde de castigo em casa, sem ter o que fazer,
assisti ao Massacre no bairro japonês. Fiquei fascinado por aquele filme. Ele
ficou em minha memória durante dias e comecei a pensar no mote para uma
brincadeira nova com o pessoal. Nos reunimos então improvisei, para não ter de
ficar explicando o filme para todo mundo: fingíamos ser ninjas. Ninguém sabia
nada sobre ninjas a não ser o que viviam nos desenhos da televisão. Então optei
por ser o rato. O rato era o ninja mais legal e inteligente, daquele programa
que passava na televisão. Os demais foram as tartarugas. No desenho eram apenas
quatro, mas como meu irmão era pequeno, demos uma quinta tartaruga para ele com
o nome de Leitinho. Todos corriam em direções dispersas, uns para dentro da
casa de vizinhos, outros para dentro de comércios, e lá ficavam até que o
destruidor, um dos colegas sorteados para o papel mais chato da brincadeira,
que era procurar quem estava escondido, achava a todos e a brincadeira recomeçava.
Não precisa dizer que tudo aquilo demorava horas e, não raras vezes, rendia
punições severas de nossos pais, pelo escândalo de entrar na casa alheia sem
ser convidado. Também vale lembrar que o Massacre no bairro japonês ficara na
minha memória, e só nela, porque ninguém abraçara a ideia de transformar o
esconde-esconde em uma porradaria a céu aberto. E a brincadeira rendia a nós
algumas farpas de pessoas queridas: a Sra. Ermelinda, que vivia sozinha, mas
sempre acompanhada pelo dono da padaria-botequim, e que sempre nos presenteava
com água e bolacha no meio da tarde, ficava irritadíssima quando entrava um ninja
na casa dela. Ela ficava tão brava que saía de roupão amarrado, quase sempre
sem nada por baixo, e entregava o menino para o destruidor, que lhe recebia com
um croque na cabeça. Mesmo todos nós sabendo da irritação da Sra. Ermelinda,
toda vez um ninja ia parar embaixo do teto da mulher. Era só questão de tempo
para alguém ser entregue.
A brincadeira se repetiu por dias. Pra mim sempre era muito mais
tranquilo achar esconderijo. Como meu pai trabalhava em casa, tínhamos que
cumprir os horários dele. Ele almoçava meio-dia, tomava café da tarde as três
horas e jantava as seis. Se falhássemos um desses horários, ou não justificássemos
uma das refeições na casa de alguém, o couro comia. Ele corria a rua inteira
atrás de nós e quanto mais longe de casa estivéssemos, mais longo era o tempo
da surra, do ponto de encontro à entrada de casa. Dizia que a pernada lhe
custara horas de serviço. E como meu irmão era muito pequeno e só conseguia
reproduzir os gestos que eu fazia, também entrava na dança e sobrava-lhe supapos
moderados pela idade, mas não menos doloridos. Meu pai era comunista. Então
resolvi que o melhor esconderijo do rato era o mais improvável: dentro da própria
casa, na barra da calça do pai, sempre. Ali eu poderia cumprir todos os horários
dele e ninguém imaginaria o mais provável: que fossem esconder-se dentro da própria
casa. Numa das vezes em que procurei esconder-me em minha própria casa, ele,
sentado com um jornal amarelo na mão, parecia tão preocupado no mundo da
leitura de quadrados anunciantes, grifando, ligando, resmungando, que nem
estranhou o fato de eu ficar em casa por muito tempo. Enquanto ele se entretia
em sua leitura, eu me entretia em olhá-lo. Depois de duas horas sem fazer nada,
só sentado no sofá esperando o tempo passar, comecei a ficar angustiado,
pensando que a brincadeira de fato acabara. Na verdade, havia esquecido da
brincadeira e decidi deixar de ser rato e conversar com meu pai. Eram raras as
vezes que isso acontecia, e eu gostava de ouvi-lo, mesmo que reclamando de
tudo. Comentei que havia visto na televisão um novo modelo de video-game, que
podia jogar luta de jogo de bar na televisão de casa, sem precisar comprar
ficha. Pouco observador como sempre, meu pai entendeu aquele puxar de conversa
de outra forma:
- Eu não tenho dinheiro, você tá entendendo? Eu não vou dar jeito de
comprar comida e sustentar essas merdas de brinquedos que você e esse cagão aí
pedem a todo momento!
Meu irmão, que brincava no carpete o olhou com espanto e frizou as
sombrancelhas, pronto para responder. Meu pai jogou o jornal amarelo em minha
direção, acertando-me em cheio na cara. Foi o suficiente para minha mãe, de
onde estava, interromper seus afazeres domésticos e vir com mais a moça que
ajudava na roupa, a bravejar:
- Eu já não falei pra não ficar pedindo coisas pro teu pai? A gente
nesse sufoco e vocês dois só pensam em gastar o que a gente não tem! Teu pai
deve pra todo mundo!
Meu irmão levantou e escorou-se na parede mais próxima. Eu, irritado
ou culpado, senti os olhos marejarem e comecei a chorar. Meu pai, que não
admitia ficar por baixo rebateu:
- Eu devo pra todo mundo porque você nunca quis por a mão em nada pra
ganhar dinheiro. Em nada! Você é outra que só sabe gastar. Se pelo menos
soubesse passar roupa, não precisava pagar essa paraíba aí!
E a moça que nos ajudava, humilhada revidou:
- Ninguém tem culpa! Ninguém aqui tem culpa da sua pobreza! Seu velho
miserável!
E a conversa foi essa. Meu pai virou um supapo forte na cara da moça,
minha mãe tentou intervir, mas a moça, irritada, puxou-lhes o cabelo e só foi
parar tudo com a entrada de um vizinho amigo nosso, que ouvira tudo e ajudou a
apartar a briga e levou a moça embora. Meu pai ficou com um chumaço de cabelo a
menos e um arranhão na cara. Acabou que decidi brincar de outra coisa. Brincaria,
naquele momento, de não me aproximar mais de meu pai sem dar a entender querer
algo. Nem que esse algo fosse sua atenção, o que de fato eu precisava naquele
momento de tédio de brincadeira terminada. Eu sabia sentir a dor da saudade de
meu pai e controlá-la, mas causar aquele mal estar danado de ele pensar em nos
dar sem poder, bater em gente, quase agredir minha mãe, me causava certa ânsia
moral. Quando todos saíram da sala, ficando apenas eu e meu irmão, li as páginas
amarelas e percebi alguns quadrados riscados, todos com referência a concerto
de coisas. Acho que meu pai procurava concertar as coisas por aí, mas quem
precisava de reparos sérios era ele. Desde que o banco negara o empréstimo, ele
ficara assim.
Saí para a rua pouco tempo depois de meu pai, que ainda discutiu com
minha mãe e bateu forte o portão da frente de casa. Me surpreendi que a
brincadeira ainda acontecia, com todos os ninjas descobertos com exceção de eu
e meu irmão. Antes tivessem nos descoberto. Recebi um supapo por ser pego. Conversei
um pouco com o pessoal. Depois de uns vinte minutos, percebi, lá pra perto da
esquina, no bar do Seu Mirante, meu pai sentado no balcão. Minha mãe se
irritava um pouco quando ele ia pra lá. Naquele momento a brincadeira de ninja
recomeçou, mas dessa vez acordei de um dos meus companheiros olhar meu irmão, e
fui. Passo ante passo, por entre as sombras, como um verdadeiro mestre da
ocultação e da dissimulação, passei por entre grandes pernas, andei devagar
espreitando a parede, até ficar num limite entre o balcão de meu pai e a parede
externa do bar e conseguir pelo menos identificar
o que ele dizia.
Dentre muxoxos de desprazer, o ouvi maldizendo minha
mãe. Se maldizendo. Contando sua história. Estava sozinho no bar. Na companhia
amarga de um copo com um líquido incolor, que cheirava acre, e os olhos de
ressaca do dono do bar. Dizia coisas de anos atrás. Quando cheguei ele estava
no meio de uma prosa:
- (...) e foi quando meu vô chegou aqui, nessa bosta
de rua. Isso tudo aqui era de barro batido, tudo fudido. Tinha um campão de
futebol lá onde moram os Catalunha. A rua era dele. Ele andava para fazer coisa
era no bairro. Aí era fácil pra aquele corno do meu vô fazer dinheiro
concertando coisa. Na cidade inteira, não tinha um filho da puta que apertasse um
prego. Era tudo nas costas daquele velho. Tinha tanto serviço que meu pai
aprendeu o ofício também. Lógico! Era besta aquele outro corno? Sabia que ia
herdar os fregueses do velhote. Quando o meu vô morreu, já tinha casa pra
cassete nessa rua. Agora tem muito mais. Mas para um terrenão descampado, do
jeito que era, naquela época a coisa já fervia. Meu pai corria a cidade como eu
corro a rua. Não dava conta. Me pegou pra Cristo. Eu não tive tempo nem de
pensar que bosta ia ser na vida. Nunca me deu espaço. Não tinha fôlego. Diante
de tantas obrigações, ele me sufocava, sabe?!... Aquele puto tinha era que ter
enfiado minha cabeça num saco e me deixado morrer asfixiado. E quando eu
comecei a me meninar conheci essa bosta dessa minha mulher. No segundo encontro,
a filha da puta me aparece grávida. De mim, lógico. Além de fudido, corno. Aí já
é demais. Eu fui levando tudo assim, do jeito que levo essa merda hoje. Os
clientes foram minguando, o dinheiro mixando. Agora o que me resta é tomar no
cu mesmo. Tenho dois filhos, que só sabem pedir. Pedem pra cassete. Tudo que vê
quer. Tenho uma mulher, que não sabe fazer nada. Ah! Ela sabe gastar pra
cassete. Ela sabe escolher roupa boa. Ela sabe ostentar a fama de consertador
que tinha meu pai e meu avô. E pra ajudar, sai essas lojas que vendem tudo que
eu fazia por metade do preço e oferece mão de obra pra montar de graça. O que
aconteceu? Tomei no cu! Sanguessugas filhos da puta!
Em uma crise de histeria, só assim saberia
classificar aquele gesto, ele arremessou o copo na parede contrária a que eu
estava, o estilhaçando em mil pedaços. Levantou. Olhou com jeito de briga para
Seu Mirante. Sabia o olhar de briga de meu pai. Pediu outra. Seu Mirante
trouxe, murmurando. Terminou de beber o que tinha no copo em um gole só. Pediu para pendurar. Só mais
aquela. A resposta de Seu Mirante, velho amigo de favores de meu pai, foi a
resposta que guardei na memória, ipsis litteris:
- Só mais essa, bêbado fudido! Vai arrumar o que fazer, vagabundo!
E meu pai saiu de lá cambaleante, sentou na guia com a cabeça entre os
joelhos e lá ficou. Tenho certeza que dormiu. Ou chorou e depois dormiu. Parou
lá, naquela posição por uns bons vinte, trinta minutos. Eu me cansei e fui
embora, com os olhos marejados após ouvi-lo desgraçar todo mundo com palavras
que ele sempre nos proibira de usar.
Cheguei em casa, minha mãe estava com rosto vermelho. Os olhos
roxeados de choro. Ela, quando chorava, se enchia ainda mais de olheiras. Fui
para o meu quarto, que dividia com meu irmão e a ajudante das roupas, quando
ela precisava de um descanso no meio da tarde, e dei um soco violento no meu
travesseiro. Imaginei que fosse a cara do meu pai. Que vontade de ter tamanho
para lhe abrir a cabeça. Na navalha. Como via muita gente fazendo, nas contações
de história de televisão e rádio. Tanto filho que matava pai. Tanto pai que
matava filho. Sei lá o que me dava na cabeça, mas eu não suportava a ideia
daquele homem ter falado tudo aquilo de nós. Com sete anos, eu já entendia
muito bem das coisas. Eu já estava bom para me virar. Olhei meu irmão ali
dormindo. Dei-lhe um tapa no olho. Ele acordou num pulo.
- Seu viado! Vai dormir que amanhã a gente vai acordar cedo!
Ele me deu um soco na barriga e voltou a dormir. Estava avisado. A
partir daquele dia, olhei meu pai com
olhos de iguais. Eu não suportaria mais aquele bêbado xingando todo mundo em
casa. Igual em muitas casas da televisão. Eu não suportaria ver ele batendo em
minha mãe. Igual batiam nas mães da televisão. Mas meu pai não era de beber.
Nem de bater. Era de xingar. Quando menos percebi consegui dormir e acordar no dia seguinte.
A fragilidade do homem e a supremacia dos lugares de poder
E fatos como os do Shopping Center aconteciam com muita frequência.
Sempre que saíamos todos juntos, voltávamos com dois felizes e meu pai e minha
mãe em clima funerário. Creio que tudo isso, pouco a pouco, fora tornando meu
pai ainda mais carrancudo, e a carranquice dele contaminava a todos nós. Ele
sempre chateava minha mãe com a ladainha de que ela queria mais do que o
acordado permitia. Nos chateava quando cobrávamos elegias. Chateava a moça que
passava roupas, quando não cumpria com o combinado de seu ordenado, alegando
que não podia naquele momento. Tinha vezes, quando ninguém quebrava e nem
encomendava nenhuma criação de meu pai, que ele se mostrava murcho, calado,
isolado. Tudo que conseguia exteriorizar era um muxoxar de críticas ao mundaréu
de acordos que não haviam cumprido com ele e que ele não cumpriria com os
outros. Controlava tudo em uma caderneta, mesmo todo mundo dizendo que aquilo
estava fora de moda, e nessas horas víamos ela voar, ele a recuperar de onde caía
e fazê-la voar novamente, depois de se certificar, novamente, da quantidade de
acordos que ia ter que atrasar.
Lembro que depois de meu pai muxoxar ofensas a todo
mundo que lhe devia, e para aqueles que ele passaria a dever, saía de casa.
Sempre. Quando voltava, sorria, fazia agrados a todos e distribuía agrados,
dizendo que daquela vez as coisas entrariam nos eixos novamente. Mas acho que
os eixos das coisas de meu pai eram desajustados, ou ligavam peças erradas. Logo ele, um construtor e reparador
das coisas, como diziam, não entendia nada de eixos. Talvez fosse por isso que
nunca aparecia trabalho a ele. Dava dois, três meses, e estávamos novamente
vendo sua caderneta voar.
Certa vez tive que acompanhar meu pai em uma dessas saídas. Eu estava
quase que pronto para ir a escola e minha mãe pediu para que eu tirasse o
uniforme e fosse com meu pai negociar. Ele afirmava, com aquele tom ranzinza,
minha presença era essencial. Andamos por uma hora. Ele comigo no colo. Passávamos
em locais divertidíssimos e ele ia sorrindo e saudando as pessoas que lhe
reconheciam. Alguns o paravam, brincavam com meus cabelos, faziam gracejos e
atrasavam nossa chegada em nosso destino. Não entendia porque ia em seu colo se
tinha pernas boas para uma caminhada - e arrisco dizer, melhores que as dele. E
ele dizia que era para eu ficar quieto, não abrir a boca, só escutar e
concordar com tudo que ele diria.
Entramos em uma casa grande. Era bem cedo e já tinha muita gente na
porta, esperando a permissão de um sujeito de colete vermelho - com os dizeres
POSSO AJUDAR? - para entrada. As pessoas carregavam no semblante o mesmo olhar
de meu pai - cabeça baixa, um cansaço no olhar e uma oleosidade muito forte na
testa e em todo o rosto. Uma mulher tinha nos braços uma menina de minha idade,
que ao me sorrir, buscando um contato de intimidade, foi advertida por um
beliscão que a fez voltar a se concentrar na face de paisagem, sem expressão,
que era seu papel representado naquele momento. Eu fazia exatamente o que meu
pai pedira: nada. Só aguardava suas ordens. Foquei o olhar nas nádegas de um
senhor idoso a minha frente. Serrei as pálpebras e pensei em todas as coisas
que estava perdendo, parado ali naquela fila. Minha meditação foi tão intensa
que quase me escorreu uma lágrima do rosto.
Na medida em que as pessoas eram permitidas a entrar pelo sujeito de
colete vermelho, elas eram bloqueadas por uma porta giratória. Voltavam até uma
faixa amarela pintada no chão, tiravam dos bolsos tudo que era de metal,
depositavam em uma caixa que só dava acesso do outro lado, e quando livrassem
de tudo que tinham, passavam e recuperavam seus pertences. Eu creio que aquela
medida era para garantir que a pessoa que entrava ali não tinha nada de valor e
falava a verdade sobre sua condição de pobreza. Meu pai foi um que teve de
tirar tudo do bolso para poder ultrapassar a porta giratória que insistia em
travar. Quanto mais travava, mais as pessoas se irritavam na fila que dobrava
quase a rua da casa. Se irritavam com a porta, se irritavam com o moço do
colete vermelho e, por fim, se irritavam com o meu pai, por ter esquecido uma
chave de fenda no bolso da calça.
Quando entramos, tivemos acesso a um salão enorme, com inúmeras mesas
com várias pessoas conversando, gritando, discutindo. Eram mesas coladas umas às
outras, e ao fundo, um gichê de atendimento com uma fila ainda maior que a de
entrada. Meu pai caminhou até onde todo mundo caminhava, e eu não entendia
porque ele ia em direção do tumulto de gente, se tinha tanto espaço livre pelo
resto do salão e nas mesas. Também notei que o serviço ali era um pouco mal
distribuído. Tinham cerca de sete mesas. Cada mesa tinha um atendente. Os
atendentes das mesas não atendiam ninguém. A única pessoa disposta para o
atendimento era a moça do gichê que, sozinha, ainda tratava quase todo mundo
mal. Na frente das mesas tinham cadeiras que ficavam desocupadas. Na frente do
gichê, tínhamos que ficar em pé. Nesse momento eu tive sorte de estar no colo
de meu pai, porque demoramos uma hora para sermos atendidos. Uma senhora
corpulenta, que mal se ajeitava em seu assento, com óculos na ponta do nariz,
mal olhou para meu pai e inaugurou o primeiro contato com ele com o urro
gutural que identifiquei:
- Que que é?
- É que preciso de um empréstimo.
- Documento!
Meu pai retirou um pedaço de papel plastificado do bolso da camisa e
entregou para a senhora, que, depois de quinze minutos, após falar com outras
pessoas e deixá-lo ali, sem nenhum retorno acerca do empréstimo, disse:
- Você tá com o nome sujo! Não dá pra fazer empréstimo!
No começo achei estranha aquela colocação. Como suja um nome? Existe
banho para nome? Se existisse, nem eu, nem meu pai sabíamos desde aquele
momento. Olhei a cara de meu pai e ele não parecia ter dúvidas do que a moça
dissera. Notei que ele estava com a cara de quem havia esquecido de consultar o
preço dos lanches. E naquele momento entendi o motivo de eu estar ali,
confortado no colo de meu pai, com cara de paisagem e com fome.
- Minha senhora, eu preciso desse empréstimo para pagar o tratamento
desse menino. Ele tem os joelhos travados e se o médico não acompanhar, ele
corre o risco de ficar sem o movimento das pernas. E tem mais minhas filhas,
uma tá com febre que ninguém tem remédio para abaixar e...
- O senhor tá com o nome sujo. Paga o que deve que a gente te concede
outro empréstimo. Tenha um bom dia! Próximo!
Vendo que não teria jeito, meu pai levantou, me colocou no chão e
fomos andando pra fora daquela agência. Seu semblante ainda mais mixo do que
quando saíra de casa. Olhei para trás, com o intuito de ver a reação da mulher
corpulenta, ao descobrir a tentativa de meu pai em passa-la pra trás, mas ela
continuou olhando pra baixo, como se simplesmente não existisse pessoas a sua
frente, mas apenas problemas oralizados em hora de trabalho. Atendeu a um outro
senhor com o mesmo Que que é?, E
manteve-se coerente em não deixá-lo terminar seus motivos em pedir um empréstimo.
Voltamos pelo mesmo caminho da ida. A viagem demorou mais. Eu nunca
havia visto semblante de dúvida, medo e confusão até aquele momento. Perguntei
se íamos pra casa, respondeu que minha mãe gastava muito. Perguntei o quanto
faltava para chegarmos, respondeu que a culpa não era só dele. Parei de
perguntar quaisquer coisas, e ele respondia com expressões como e agora?, To
fudido, puta que pariu. Ao chegar em casa, pela primeira vez, ninguém foi
agradado, não houve risos, não houve alegria. A primeira coisa que meu pai fez
foi por fogo em sua caderneta de compromissos. Depois, abriu a geladeira e
tomou uma cerveja. Mais uma. Repetiu. Enquanto bebia, parecia que lhe emergia
um desespero exteriorizado por um riso solto, de tudo que todo mundo lhe fazia.
Naquela noite, tivémos a certeza de que meu pai decidira gastar toda sua
felicidade. Foi a primeira vez que vimos meu pai bêbado. Quando já era tarde,
quase que cedo, vimos minha mãe sentada na calçada de casa o ajudando a entrar.
De sua garganta vinha um barulho estranho que interpretamos como o soluço de
uma alegria contrária.
A fragilidade do homem e a supremacia dos lugares de poder
Durante anos evitávamos a rua, criando opções.
Meu pai era construtor, mas não lembro bem o título que tinha no papel. Construía
coisas para casa, remendava móveis, reparava o que quebravam e, quando sobrava
tempo, criava. Suas remendas e criações eram bem infantis e precárias, variando
de rústicos brinquedos a acentos e mobiliários esquisitos que não duravam muito
tempo. Lembro, como se fosse hoje, do forte cheiro de cola que tinha o cantinho
de meu pai. Era um cômodo pequeno e apertado, cheio de coisinhas: serras,
martelos, pregos, parafusos de tudo quanto é tipo e muitas coisas. Umas completas,
outras pela metade, ele tinha ali o seu espaço de criação. Naquele mundinho era
Deus. Mas era o Deus mais bagunceiro que eu conheci. Não tinha muito jeito
para a coisa. Quase sempre não se encontrava em seu canto. Vivia reclamando que
tinha aquela função por uma imposição, quase que medieval e divina, de seu pai
e seu avô. Ambos foram marceneiros. Os melhores. Ambos trabalharam duro para
garantir a casa que morávamos. Ofereceram o cargo ao meu pai, mas esqueceram de
lhe dar a habilidade e os atributos. Ele reclamava.
Levantava cedo e ficava naquela salinha.
Quando não íamos à escola por algum motivo, via sua rotina, quase que
sonolenta, de trabalho. Com um cigarrinho no canto da boca, roupas de ficar em
casa, ele acompanhava o mundo em um rádio mal sintonizado, mantinha-se acordado
com um café amargo e ia, vagarosamente, arrumando aqui, arrumando ali. Não tinha
muito serviço, então fazia o tempo render. E ele fazia isso para ter o que
dizer na hora do jantar. Para ter como maldizer pessoas que viviam nas ruas sem
função. Porque ele, ele ficava naquela salinha mal iluminada oito horas diárias,
contadas no relógio. Produzindo, dizia. Trabalhando, dizia. Com o foco ali. E
aqueles vagabundos que viviam nos botequins queriam, para meu pai, a vida fácil.
A vida da vadiagem. Ele sempre os pegava de exemplo. Minha mãe dizia:
- Seu pai sempre precisando de um Cristo.
E meu pai reclamava. Mas não reclamava só
de sua condição de marceneiro. Seu verbo soava análises sobre o mundo. Às vezes
o tinha como um cientista. Entendia de tudo. De todos os assuntos que apareciam
na televisão. E ele falava com propriedade. O assunto estava na ponta da língua.
Se estivesse no lugar de todas aquelas pessoas que comandavam as coisas, o
mundo seria muito melhor. Certeza que seria. Eu me perguntava, vendo-o muitas
vezes exaltado com a caixa preta, porque é que as pessoas não davam ouvidos para
o meu pai? Se elas o escutasse, aqueles problemas todos que eram noticiados não
estariam acontecendo e teria mais espaço na televisão para passar coisas
legais. Eu gostava de desenhos. Os desenhos que meu pai também criticava. Ele
dizia que o desenho transformava a gente em paquiderme. Não deixava a gente
sair pra rua e exercitar o corpo. Deixava a gente burro, porque ninguém
sobreviveria a uma rocha na cabeça. Deixava a gente viadinho, porque não era
legal chorar com a quarta morte de seu personagem japonês favorito. E ele tinha
outras queixas a fazer com o mundo. As diárias. Aquelas que se repetiam, às
vezes, quase que duas vezes por dia. Era a crítica direta, na forma com que
ele, o mundo, entendia as coisas. Porque naquele tempo, tudo que precisávamos
conseguíamos a partir de um acordo de trocas. Eram acordos de serviços, como
chamar uma moça em casa para passar roupa, permissões, como deixar minha mãe
sair e voltar com várias sacolas de sapatos, joias e maquiagens, ou homenagens,
como presentear a mim e a meu irmão com brinquedos e passeios. Chamavam, no
costume, o acordo de lucro, dinheiro. E o dinheiro era um vilão para o meu pai.
Para ele, aquele acordo de troca era muito desigual. Meu pai tinha que
consertar e criar em grandes quantidades para conseguirmos coisas triviais do
dia a dia. E isso ele sabia amaldiçoar como ninguém. Porque ele não era bom em
consertar, todo mundo sabia disso. Aí ele tinha pouco serviço. Aí ele amaldiçoava
o pai e o avô. Aí ele amaldiçoava o tempo, porque já não dava mais para ele ser
outra coisa. Então, vivíamos num fogo cruzado, na corda bamba do mundo. Escolhíamos
um dia do mês para certas atividades, como por exemplo, comer o que todos
comentavam, assistir a um filme que todos assistiram, ir a lugares que todos
iam, desde que não exigisse uma locomoção muito complicada e que pudéssemos
chegar com a resistência de nossas pernas.
Certa vez, vimos na televisão um novo
sanduíche que vinha com um brinde de presente. O brinquedo em si era de péssima
qualidade, dizia meu pai, assim como o lanche, dizia meu pai, mas a publicidade
transformava aquilo tudo em uma terrível tentação, dizíamos nós, com outras
palavras. Eu e meu irmão mais novo, sempre que víamos a propaganda gritávamos
pela atenção de minha mãe, que calma como sempre, nos dizia, seu pai não tem
dinheiro, espera o fim de mês. E queríamos. E atormentávamos. Até que em um dia
de um mês, meu pai anunciou para nós:
- Vamos ao Shopping comprar esse diacho de lanche.
Andamos por duas horas. As horas foram contadas
no meu relógio de pulso, batendo com o do meu pai. Saímos de casa às 11:00. A
caminhada era longa, com declives de subidas e descidas. Raramente eu olhava
para frente. Tinha a mania de caminhar apreciando o que já fora. Admirava
demais cada detalhe da vida urbana: pessoas esparramadas no chão, de qualquer
jeito. Homens com pressa. Mulheres com pressa. Esbarrões sem desculpa. Uma moça
que conversava, histérica, ao celular. Um rapaz que bebia um refrigerante e
mastigava um hambúrger, enquanto andava. Outro que corria para pegar o ônibus e
amaldiçoava o motorista, por ter se atrasado cinco segundos e o ônibus partir
sem levá-lo. O que mais me espantou foram os senhores e crianças que passavam
pedindo dinheiro para o meu pai. Eram pessoas de tudo quanto é jeito, que eu
nunca tinha visto em lugar nenhum. Um homem tinha parte da face deformada, o
nariz torno, a boca virada, poucos dentes. Grunhia algo que só era entendido
mesmo devido aos gestos que fazia. Uma criança magra, suja, com escoriações na
face e no corpo. Um garoto ainda mais novo, ainda mais sujo e ainda mais magro,
imitando o gesto. Me espantei com a crueldade que meu pai os tratara. Um garoto
se referiu a meu pai por senhor:
- Senhor ajuda eu com uma moedinha, pra comer?
Meu pai, que teve que esperar quase um mês
para nos permitir um lanche feliz, respondeu:
- Porque teu pai não arruma um emprego, hein? Vai, vai. Some daqui!
Era isso. O menino ficou lá, murmurando palavras que fizeram meu pai
olhar pra trás e o garoto correr de medo. E todo mundo fazia exatamente a mesma
coisa. Ninguém os via. Somente os enxergavam como obstáculos no trajeto.
Desviavam e quando a abordagem era inevitável, embruteciam, xingavam, davam de
ombros. Talvez fosse uma verdade que ninguém queria engolir: aquele mundo tinha
gente em condição de morto-vivo. Aquelas pessoas andavam com a repugnância de não
saberem, ao certo, se viviam, morriam ou morto-viviam. Mas eles tinham
intererassões interessantes um com o outro. Brincavam, riam, xingavam. Tinham
cachorros também. Os cachorros e os meninos. Os velhos. Todos de Graciliano.
Andavam pomposos, latiam, entravam na brincadeira. E quando tinham que correr,
corriam. Unidos, se espalhando como formigas em formigueiro. Enquanto andávamos
vimos um casal distraído. O homem andava com a carteira aparecendo no bolso de
trás. Um garoto correu e pegou. Atravessou a rua como um jato, forçando
freiadas bruscas. O ex-dono da carteira foi atrás, mas mal começou a correr,
veio um maior e lhe deu um encontrão, o forçando perder o ladrão de vista.
Depois esse também correu, sumiu, como bala, em outro sentido. Era muita gente.
Ninguém preocupada com mais um desavisado que perdia a carteira.
Tudo isso me forçava a andar olhando para o pé, para trás, para os lados,
menos para a frente. Raramente para frente. Até que chegamos em um salão
monumental, com portas imensas. Um castelo, como víamos nos desenhos e filmes.
Mas lá morava muito mais gente. E circulavam muito mais pessoas do que nas
ruas. Contudo, percebi que as pessoas escolhiam as roupas para a ocasião. A mudança
da rua para o castelo era gritante. Aquele lugar pedia que você usasse sua
melhor roupa, a mais bonita. Claro, se todos fossem lá com a mesma frequência
que nós íamos, aquele era um momento especial. Especial para todos nós. As
pessoas andavam muito bonitas e, aparentemente, felizes em vestirem-se daquele
jeito. Uns exageram muito na escolha. Vi um rapaz com os cabelos verdes,
espetados e pra cima, junto de um grupo com cabelos ainda mais esquisitos.
Vestiam couro, botas grandes, e quando passaram por nós meu pai os olhou com
aquela cara de quem olha alguém para arrumar encrenca. Todos ignoravam todos.
Um homem me viu porque o esbarrei no calcanhar. Ele grunhiu um nome alto de dor
e, quando me viu, brincou com meus cabelos e foi embora. Continuamos andando,
avançando ainda mais naquele monumento que meu pai chamara Shopping Center.
Shopping Center do cassete.
Tinha três galpões um em cima do outro. O acesso era por escadas que
giravam sozinhas. Em cada galpão, várias casas com pessoas fazendo trocas uma
com as outras. As pessoas que vinham para passear, tal qual nós, eram muito
exigentes com as trocas. Passavam horas e horas olhando os objetos por trás de
um vidro e não adquiriam nada. Minha mãe era uma delas. Ficou horas admirando
uma bolsa, que parecia muito com a que estava no ombro, mas não a trocou. Ao
seu lado, uma senhora com cabelos loiros, volumosos, parecia o palhaço que fazia a propaganda do meu lanche. O dela
era amarelo. Tinha pérolas grandes nas orelhas, óculos escuros que lhe cobriam
quase que os olhos, a testa e as bochechas. Aqueles visores lhe garantiam a
arrogância de seu portar. Não se sabia ao certo para quem ela olhava, mas sabia
quem ela esnobava: a todos. O homem responsável por todas aquelas mercadorias,
ou bostas, como dizia meu pai, aproximava-se da senhora e era despachado com
grosserias e palavras breves. Ele, me admirando, insistia no contato e ela
tornava a distanciá-lo. Até que fora vencida pelo cansaço. Com petulância,
pediu ao homem que descesse pilhas e pilhas de calçados e levou, dentre todos,
um. Minha mãe namorou todos os pares que aquela senhora fantasiada
experimentara. Meu pai, vendo que minha mãe desejava tanto aquele objeto, fez o que
sempre fazia: nem sequer um esforço para ser gentil. Ficara com o olhar acabrunhado,
reclamando de tudo, meditabundo em seu mal-humor. Quando ela lhe exteriorizou o
desejo, tudo que fez foi lhe olhar. Ignorou e pediu que fôssemos andando. Senti
vontade de pedir a mulher fantasiada que desse um dos pares a minha mãe, já que
ela desprezara tantos, mas meus pais ficariam bravos, chiliquentos, e, como das
últimas vezes que tive esse ímpeto, receberia uma surra. Então andamos. Vimos
mais vitrines, minha mãe se encheu ainda mais de desejo e meu pai de introspecção.
A cada loja, um comentário, a cada comentário, um silêncio. Reparei também que
a cara do meu pai combinava muito com a cara de outras pessoas naquele
ambiente. Todas pareciam encher-se de um gozo transbordante e transcendente e,
em seguida, voltar-se a si com uma rabugência da impossibilidade. Todos
precisavam muito de tudo que viam ali. Se conformavam em não ter. Os objetos
eram para exposição. Os objetos eram para poucos, premiados e sortudos.
Contudo, a exposição era suficiente para muita gente. Principalmente para minha
mãe. O prazer entre a posse e o desejo da posse era o interessante naquilo
tudo. Como na vez em que minha mãe namorou durante horas um perfume que uma moça
passava vendendo de casa em casa na minha rua. Foram semanas falando da fragância,
do frasco, do preço e até dos benefícios daquele objeto. Meu pai, não
aguentando mais tanta indireta, comprou o perfume. Minha impressão era que
minha mãe acabaria com o líquido em dois dias. Comemorasse a conquista do tão
sonhado perfume com festividades e mostrasse a todos o que conseguiu. Mas não.
Por dois dias sentimos o cheiro perfumado em seu corpo. No terceiro, ela
deixou-o de canto, para enfeitar a penteadeira. No quarto dia já tinha desejo
por outras coisas. O perfume só serviu mesmo foi de argumento para o meu pai,
quando minha mãe pedia alguma coisa.
Andamos por, mais ou menos, vinte minutos. Notei que,
involuntariamente, até meu olhar já era perturbador e pedia clemência por um
lugar para sentar e um prato de comida. Todos estávamos cansados. Exceto minha
mãe. Ela não se exauria em desejar o que jamais teria. Gostava de apreciar
tudo, desde os badulaques mais inúteis até aneis, colares e brincos com o valor
de três, quatro, cinco dígitos que jamais alguém o usaria. Meu pai dizia serem
adereços de pavão, para tudo que minha mãe via. Quando chegamos no limite de
nossos pés, estômago e paciência, meu pai disse, vamos comer. Parecia que minha
mãe tinha recebido um golpe naquele momento. Um golpe que lhe ofendera sete
gerações familiares. Ela fechou a cara e caminhou distante, mesmo ao lado de nós
e de meu pai. Percebi que meu pai ganhara uma parceira para sua rabugice. Ao
longe, conforme andávamos no último andar do Shopping, avistei o símbolo que víamos na televisão, o lugar que
vendia o lanche feliz. Eu e meu irmão corremos na frente. Notei que outras
crianças faziam o mesmo. Ao chegar perto do local, um susto. Nunca vi tanta
gente junto. Era um salão pequeno, com um balcão e por trás dele, a cozinha
onde as pessoas faziam os sanduíches. Não vi nenhum desenho animado pululante
fazendo graças em aventuras. Preferi, de cara, meu lanche da televisão. A recepção,
a alegria, o conforto e até o desejo de consumir o que divulgavam era muito
maior do que na vida real. Do balcão até meu pai tinham cerca de, na minha
perspectiva, umas trinta, quarenta pessoas. Demoramos mais vinte minutos para
sermos atendidos e aquilo nos fatigou todos. Pedi, pedimos para irmos embora,
mas meu pai, brutucu de nascimento, nos fez ficar por lição:
- Vocês querem é me deixar louco! Com tanto trabalho, me fizeram sair
de casa. Agora vão engolir essas porcarias de lanches goela abaixo!
Na nossa vez, meu pai pediu dois lanches felizes - um para cada filho
da família. A garota que nos atendia vestia um uniforme engraçado, colorido,
com boné e alegria. Seu semblante era de uma pessoa stressada. Quando meu pai
perguntou quanto era, ela o olhou com carranca e disse:
- Cinquenta reais.
Por alguns minutos meu pai pareceu congelado. Aquele
semblante que já sabíamos identificar nele. O olhar de consciência, a epifania
do impulsivo. Ele não tinha consultado o preço dos lanches. O fato de ser
sempre impulsivo era o principal defeito de meu pai. Era um homem de impulsos
em sua calma e em sua ira, em seus anseios e em seus desejos. Raramente
racionalizava o mundo. O meu pai era movido pela emoção da pressão arterial.
Quando se dava conta de que faltara a racionalidade de um planejamento, mínimo
que fosse, como por exemplo consultar o preço de um sanduíche, ele nos admirava
com aquele semblante de desrumado. Eu já sabia reconhecer o semblante e os números, pois ele me ensinava
em casa, sempre que dava. Na mão dele tinham três notas de dez. Era isso mesmo.
Três notas de dez. Três vezes o número dez, segundo meu pai, era trinta.
Precisava de mais duas daquelas. Ele as segurou entre os dedos, quase que
frouxamente. Se um esperto passasse naquele momento, tiraria a sorte grande.
Ele olhou para minha mãe, minha mãe o olhou complacente. Ele nos olhou, guardou
as notas e disse:
- Vamos sentar ali um pouquinho para eu pensar.
Nos sentamos em um banco de frente para a lanchonete. Minha mãe
segurou meu irmão no colo e eu fiquei ao seu lado, quieto. Meu pai começou a
andar e conversar com as pessoas da fila. Não entendi muito bem o que ele
dizia, mas abordava alguém e com um olhar muxoxo, falava, nos apontava e falava
de novo. Uns o ignoravam, o tratavam com rispidez. Me lembrei do percurso de
casa ao Shopping e percebi que ele faria a mesma coisa se visse a si mesmo
naquela situação. Até que um casal de senhores, ao nos avistar quando meu pai
nos apontou, gesticulou para que eu e meu irmão chegássemos perto dele.
- Eu pago seu lanche, filho. Teu pai pode guardar esse dinheiro para
voltar de ônibus com vocês.
Eu dei-me por satisfeito. Fiquei feliz. Sorri. Meu pai estava era
vermelho. Nunca o vi daquela cor e nunca o vi tão desejante de tornar-se invisível.
Mesmo porque, se a rua fosse a moradia de um nada, ser pedinte era o ofício
daqueles subjulgados por meu pai. Daí então, sim, comemos o lanche feliz tão
esperado, ganhamos o brinquedo que tanto queríamos e voltamos para casa. De ônibus.
Tudo parecia perfeito demais para eu e meu irmão, mas meu pai e minha mãe
voltaram emudecidos. Nem se falavam. Só se olhavam, nos olhavam, resmungavam.
Ficaram ali, mas em outro lugar. O humor deles fora tão contagiante que eu
decidi, em acordo com meu irmão, nunca mais pedir nada daquelas coisas para
eles. Se fosse para nós sorrirmos e eles ficarem daquele jeito, era melhor que
a gente aguentasse a tristeza, porque eu sabia qual era o limite da minha ansiedade,
dentro de mim. No outro, a tristeza doía muito mais. Mas éramos crianças. Era
difícil controlar a ânsia do desejo. Principalmente do desejo consumista de
vermos na televisão e no corpo dos outros, coisas que dificilmente teríamos a
chance de ter ou usar. Era muito complicado nos acostumarmos a não termos um
computador, um tablet, um video game de última geração. Mais complicado ainda
era admitirmos a impossibilidade para os outros. Nos assumirmos atrasados a
toda uma tendência daquela humanidade que nos olhava, nos julgava e nos formava
era admitirmos incapazes, ineficientes para constituí-la. Era como se, em um
mundo de maratonistas, todos andassem e nós não tivéssemos pernas. Corríamos
como podíamos, com as mãos arrastando o tronco do corpo, com cotoquinhos de
pernas murchas. Não adiantava nem sonhar em ter a mesma velocidade que os
outros. Ficávamos para trás mesmo. Aproveitávamos a tendência do mundo passado,
no tempo presente. Jamais nos acostumaríamos com aquilo.