TRILHA SONORA RECOMENDADA
I
E fatos como os do Shopping Center aconteciam com muita frequência.
Sempre que saíamos todos juntos, voltávamos com dois felizes e meu pai e minha
mãe em clima funerário. Creio que tudo isso, pouco a pouco, fora tornando meu
pai ainda mais carrancudo, e a carranquice dele contaminava a todos nós. Ele
sempre chateava minha mãe com a ladainha de que ela queria mais do que o
acordado permitia. Nos chateava quando cobrávamos elegias. Chateava a moça que
passava roupas, quando não cumpria com o combinado de seu ordenado, alegando
que não podia naquele momento. Tinha vezes, quando ninguém quebrava e nem
encomendava nenhuma criação de meu pai, que ele se mostrava murcho, calado,
isolado. Tudo que conseguia exteriorizar era um muxoxar de críticas ao mundaréu
de acordos que não haviam cumprido com ele e que ele não cumpriria com os
outros. Controlava tudo em uma caderneta, mesmo todo mundo dizendo que aquilo
estava fora de moda, e nessas horas víamos ela voar, ele a recuperar de onde caía
e fazê-la voar novamente, depois de se certificar, novamente, da quantidade de
acordos que ia ter que atrasar.
Lembro que depois de meu pai muxoxar ofensas a todo
mundo que lhe devia, e para aqueles que ele passaria a dever, saía de casa.
Sempre. Quando voltava, sorria, fazia agrados a todos e distribuía agrados,
dizendo que daquela vez as coisas entrariam nos eixos novamente. Mas acho que
os eixos das coisas de meu pai eram desajustados, ou ligavam peças erradas. Logo ele, um construtor e reparador
das coisas, como diziam, não entendia nada de eixos. Talvez fosse por isso que
nunca aparecia trabalho a ele. Dava dois, três meses, e estávamos novamente
vendo sua caderneta voar.
Certa vez tive que acompanhar meu pai em uma dessas saídas. Eu estava
quase que pronto para ir a escola e minha mãe pediu para que eu tirasse o
uniforme e fosse com meu pai negociar. Ele afirmava, com aquele tom ranzinza,
minha presença era essencial. Andamos por uma hora. Ele comigo no colo. Passávamos
em locais divertidíssimos e ele ia sorrindo e saudando as pessoas que lhe
reconheciam. Alguns o paravam, brincavam com meus cabelos, faziam gracejos e
atrasavam nossa chegada em nosso destino. Não entendia porque ia em seu colo se
tinha pernas boas para uma caminhada - e arrisco dizer, melhores que as dele. E
ele dizia que era para eu ficar quieto, não abrir a boca, só escutar e
concordar com tudo que ele diria.
Entramos em uma casa grande. Era bem cedo e já tinha muita gente na
porta, esperando a permissão de um sujeito de colete vermelho - com os dizeres
POSSO AJUDAR? - para entrada. As pessoas carregavam no semblante o mesmo olhar
de meu pai - cabeça baixa, um cansaço no olhar e uma oleosidade muito forte na
testa e em todo o rosto. Uma mulher tinha nos braços uma menina de minha idade,
que ao me sorrir, buscando um contato de intimidade, foi advertida por um
beliscão que a fez voltar a se concentrar na face de paisagem, sem expressão,
que era seu papel representado naquele momento. Eu fazia exatamente o que meu
pai pedira: nada. Só aguardava suas ordens. Foquei o olhar nas nádegas de um
senhor idoso a minha frente. Serrei as pálpebras e pensei em todas as coisas
que estava perdendo, parado ali naquela fila. Minha meditação foi tão intensa
que quase me escorreu uma lágrima do rosto.
Na medida em que as pessoas eram permitidas a entrar pelo sujeito de
colete vermelho, elas eram bloqueadas por uma porta giratória. Voltavam até uma
faixa amarela pintada no chão, tiravam dos bolsos tudo que era de metal,
depositavam em uma caixa que só dava acesso do outro lado, e quando livrassem
de tudo que tinham, passavam e recuperavam seus pertences. Eu creio que aquela
medida era para garantir que a pessoa que entrava ali não tinha nada de valor e
falava a verdade sobre sua condição de pobreza. Meu pai foi um que teve de
tirar tudo do bolso para poder ultrapassar a porta giratória que insistia em
travar. Quanto mais travava, mais as pessoas se irritavam na fila que dobrava
quase a rua da casa. Se irritavam com a porta, se irritavam com o moço do
colete vermelho e, por fim, se irritavam com o meu pai, por ter esquecido uma
chave de fenda no bolso da calça.
Quando entramos, tivemos acesso a um salão enorme, com inúmeras mesas
com várias pessoas conversando, gritando, discutindo. Eram mesas coladas umas às
outras, e ao fundo, um gichê de atendimento com uma fila ainda maior que a de
entrada. Meu pai caminhou até onde todo mundo caminhava, e eu não entendia
porque ele ia em direção do tumulto de gente, se tinha tanto espaço livre pelo
resto do salão e nas mesas. Também notei que o serviço ali era um pouco mal
distribuído. Tinham cerca de sete mesas. Cada mesa tinha um atendente. Os
atendentes das mesas não atendiam ninguém. A única pessoa disposta para o
atendimento era a moça do gichê que, sozinha, ainda tratava quase todo mundo
mal. Na frente das mesas tinham cadeiras que ficavam desocupadas. Na frente do
gichê, tínhamos que ficar em pé. Nesse momento eu tive sorte de estar no colo
de meu pai, porque demoramos uma hora para sermos atendidos. Uma senhora
corpulenta, que mal se ajeitava em seu assento, com óculos na ponta do nariz,
mal olhou para meu pai e inaugurou o primeiro contato com ele com o urro
gutural que identifiquei:
- Que que é?
- É que preciso de um empréstimo.
- Documento!
Meu pai retirou um pedaço de papel plastificado do bolso da camisa e
entregou para a senhora, que, depois de quinze minutos, após falar com outras
pessoas e deixá-lo ali, sem nenhum retorno acerca do empréstimo, disse:
- Você tá com o nome sujo! Não dá pra fazer empréstimo!
No começo achei estranha aquela colocação. Como suja um nome? Existe
banho para nome? Se existisse, nem eu, nem meu pai sabíamos desde aquele
momento. Olhei a cara de meu pai e ele não parecia ter dúvidas do que a moça
dissera. Notei que ele estava com a cara de quem havia esquecido de consultar o
preço dos lanches. E naquele momento entendi o motivo de eu estar ali,
confortado no colo de meu pai, com cara de paisagem e com fome.
- Minha senhora, eu preciso desse empréstimo para pagar o tratamento
desse menino. Ele tem os joelhos travados e se o médico não acompanhar, ele
corre o risco de ficar sem o movimento das pernas. E tem mais minhas filhas,
uma tá com febre que ninguém tem remédio para abaixar e...
- O senhor tá com o nome sujo. Paga o que deve que a gente te concede
outro empréstimo. Tenha um bom dia! Próximo!
Vendo que não teria jeito, meu pai levantou, me colocou no chão e
fomos andando pra fora daquela agência. Seu semblante ainda mais mixo do que
quando saíra de casa. Olhei para trás, com o intuito de ver a reação da mulher
corpulenta, ao descobrir a tentativa de meu pai em passa-la pra trás, mas ela
continuou olhando pra baixo, como se simplesmente não existisse pessoas a sua
frente, mas apenas problemas oralizados em hora de trabalho. Atendeu a um outro
senhor com o mesmo Que que é?, E
manteve-se coerente em não deixá-lo terminar seus motivos em pedir um empréstimo.
Voltamos pelo mesmo caminho da ida. A viagem demorou mais. Eu nunca
havia visto semblante de dúvida, medo e confusão até aquele momento. Perguntei
se íamos pra casa, respondeu que minha mãe gastava muito. Perguntei o quanto
faltava para chegarmos, respondeu que a culpa não era só dele. Parei de
perguntar quaisquer coisas, e ele respondia com expressões como e agora?, To
fudido, puta que pariu. Ao chegar em casa, pela primeira vez, ninguém foi
agradado, não houve risos, não houve alegria. A primeira coisa que meu pai fez
foi por fogo em sua caderneta de compromissos. Depois, abriu a geladeira e
tomou uma cerveja. Mais uma. Repetiu. Enquanto bebia, parecia que lhe emergia
um desespero exteriorizado por um riso solto, de tudo que todo mundo lhe fazia.
Naquela noite, tivémos a certeza de que meu pai decidira gastar toda sua
felicidade. Foi a primeira vez que vimos meu pai bêbado. Quando já era tarde,
quase que cedo, vimos minha mãe sentada na calçada de casa o ajudando a entrar.
De sua garganta vinha um barulho estranho que interpretamos como o soluço de
uma alegria contrária.
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