domingo, 18 de maio de 2014

03 - REABERTURA

TRILHA SONORA RECOMENDADA


II




O livre-arbítrio arbitrário que consome minha liberdade com a lembrança de me alimentar



A rua em que morávamos era muito deserta. Raras vezes passavam carros, então ficávamos livres para fazer o que bem entendêssemos. O bairro era tranquilo. Refletia a vida urbana de qualquer paulistano de classe média: casas boas e grandes ao lado de casas menores, humildes; crianças na rua, mas sob vigília das mães ou avós que a cada segundo lhes lembravam algum dever de casa mal feito; o café da tarde servido na casa de um dos magnatas mais endinheirados, servido pela mãe ou pela avó, para evitar que ficássemos tanto tempo na rua. Cada dia tomávamos café na casa de um amigo diferente. Em minha casa não íamos. Meu pai fazia ressalvas com bagunça em casa. Brincadeira só na rua. Não queria molecada pela casa bagunçando, enquanto ele trabalhava. Minha mãe também não tinha tempo para ficar cuidando de café pra toda a vizinhança. Ela tomava café todo dia na casa da vizinha, Dona Inaura, que também a presenteava com algumas coisas para o jantar, como mistura, sobremesa. Meu pai, além de comer o que Dona Inaura dava, ainda reclamava que minha mãe ficava muito na casa dela e dizia que aquela era uma velhota solitária sem família. Que mais cedo ou mais tarde, iria querer mandar  e desmandar nas regras de casa. Meu pai tinha muito medo de perder o encargo que tinha de líder da casa. Acho que por ser a única coisa que ele liderava e se mantinha em poder. Isso o deixava confortável. Nos dar educação, garantir que não desrespeitássemos ninguém, limitar hora de entrada e hora de saída, hora de dormir, hora de acordar, eram para ele uma das funções que talvez lhe dava prazer. Era, também, a única que ele fazia sem a necessidade de se preocupar se no dia seguinte teria ou não trabalho. Nós sempre estávamos por lá. E aproveitávamos nossa infância. Muito. Era como redescobrir mundos, tentar vivenciá-los, se descobrir sonhando o tempo inteiro. Mesmo sem os melhores video-games, o único que tinha um video-game decente era um de nossos vizinhos que pouco saía, porque seus pais não deixavam ele ficar na rua e ele estudava em tempo integral, nós usávamos da imaginação do que víamos na televisão. Aquele cubo dera muito mote para nossas experiências infantis. Como a brincadeira do Massacre no Bairro Japonês, que, como todas, não deu muito certo.

Já um pouco mais velho, completava meus sete anos de idade, eu tinha responsabilidade de cuidar de meu irmão: não deixá-lo cair, não deixá-lo chorar, não deixá-lo se machucar, não deixá-lo machucar ninguém. Quase todo dia eu mostrava despreparo nessa atividade, e voltava pra casa com um motivo para um cascudo  ou um puxão de orelha. Meu irmão tinha quatro anos de idade, era gordinho, troncudo de braço e perna, extremamente briguento. Não podia ser contrariado que queria vencer o argumento do outro na força. E toda vez que ele se esquentava com algum de nós, ele levava a pior, porque era o mais novo. Nosso medo era quando a idade, a altura e a força começassem a se tornar imperceptíveis.

Como estávamos de férias da escola, sobrava tempo para fazer besteira. Éramos ao todo sete crianças e, sinceramente, não lembro o nome de nenhuma delas. Passávamos horas organizando torneios imaginários de futebol, inventávamos personagens, papeis de prestígio, motivos para desentendimentos e entendimentos. Eu sempre era o maioral, gostava de ser aquele que atirava bombas e explodia tudo, igual víamos na televisão. Por ser o mais velho da turma, dava o mote das brincadeiras e obrigava todo mundo a aceitar de força bruta ou pelo convencimento da palavra. Em uma tarde de castigo em casa, sem ter o que fazer, assisti ao Massacre no bairro japonês. Fiquei fascinado por aquele filme. Ele ficou em minha memória durante dias e comecei a pensar no mote para uma brincadeira nova com o pessoal. Nos reunimos então improvisei, para não ter de ficar explicando o filme para todo mundo: fingíamos ser ninjas. Ninguém sabia nada sobre ninjas a não ser o que viviam nos desenhos da televisão. Então optei por ser o rato. O rato era o ninja mais legal e inteligente, daquele programa que passava na televisão. Os demais foram as tartarugas. No desenho eram apenas quatro, mas como meu irmão era pequeno, demos uma quinta tartaruga para ele com o nome de Leitinho. Todos corriam em direções dispersas, uns para dentro da casa de vizinhos, outros para dentro de comércios, e lá ficavam até que o destruidor, um dos colegas sorteados para o papel mais chato da brincadeira, que era procurar quem estava escondido, achava a todos e a brincadeira recomeçava. Não precisa dizer que tudo aquilo demorava horas e, não raras vezes, rendia punições severas de nossos pais, pelo escândalo de entrar na casa alheia sem ser convidado. Também vale lembrar que o Massacre no bairro japonês ficara na minha memória, e só nela, porque ninguém abraçara a ideia de transformar o esconde-esconde em uma porradaria a céu aberto. E a brincadeira rendia a nós algumas farpas de pessoas queridas: a Sra. Ermelinda, que vivia sozinha, mas sempre acompanhada pelo dono da padaria-botequim, e que sempre nos presenteava com água e bolacha no meio da tarde, ficava irritadíssima quando entrava um ninja na casa dela. Ela ficava tão brava que saía de roupão amarrado, quase sempre sem nada por baixo, e entregava o menino para o destruidor, que lhe recebia com um croque na cabeça. Mesmo todos nós sabendo da irritação da Sra. Ermelinda, toda vez um ninja ia parar embaixo do teto da mulher. Era só questão de tempo para alguém ser entregue.

A brincadeira se repetiu por dias. Pra mim sempre era muito mais tranquilo achar esconderijo. Como meu pai trabalhava em casa, tínhamos que cumprir os horários dele. Ele almoçava meio-dia, tomava café da tarde as três horas e jantava as seis. Se falhássemos um desses horários, ou não justificássemos uma das refeições na casa de alguém, o couro comia. Ele corria a rua inteira atrás de nós e quanto mais longe de casa estivéssemos, mais longo era o tempo da surra, do ponto de encontro à entrada de casa. Dizia que a pernada lhe custara horas de serviço. E como meu irmão era muito pequeno e só conseguia reproduzir os gestos que eu fazia, também entrava na dança e sobrava-lhe supapos moderados pela idade, mas não menos doloridos. Meu pai era comunista. Então resolvi que o melhor esconderijo do rato era o mais improvável: dentro da própria casa, na barra da calça do pai, sempre. Ali eu poderia cumprir todos os horários dele e ninguém imaginaria o mais provável: que fossem esconder-se dentro da própria casa. Numa das vezes em que procurei esconder-me em minha própria casa, ele, sentado com um jornal amarelo na mão, parecia tão preocupado no mundo da leitura de quadrados anunciantes, grifando, ligando, resmungando, que nem estranhou o fato de eu ficar em casa por muito tempo. Enquanto ele se entretia em sua leitura, eu me entretia em olhá-lo. Depois de duas horas sem fazer nada, só sentado no sofá esperando o tempo passar, comecei a ficar angustiado, pensando que a brincadeira de fato acabara. Na verdade, havia esquecido da brincadeira e decidi deixar de ser rato e conversar com meu pai. Eram raras as vezes que isso acontecia, e eu gostava de ouvi-lo, mesmo que reclamando de tudo. Comentei que havia visto na televisão um novo modelo de video-game, que podia jogar luta de jogo de bar na televisão de casa, sem precisar comprar ficha. Pouco observador como sempre, meu pai entendeu aquele puxar de conversa de outra forma:

- Eu não tenho dinheiro, você tá entendendo? Eu não vou dar jeito de comprar comida e sustentar essas merdas de brinquedos que você e esse cagão aí pedem a todo momento!

Meu irmão, que brincava no carpete o olhou com espanto e frizou as sombrancelhas, pronto para responder. Meu pai jogou o jornal amarelo em minha direção, acertando-me em cheio na cara. Foi o suficiente para minha mãe, de onde estava, interromper seus afazeres domésticos e vir com mais a moça que ajudava na roupa, a bravejar:

- Eu já não falei pra não ficar pedindo coisas pro teu pai? A gente nesse sufoco e vocês dois só pensam em gastar o que a gente não tem! Teu pai deve pra todo mundo!

Meu irmão levantou e escorou-se na parede mais próxima. Eu, irritado ou culpado, senti os olhos marejarem e comecei a chorar. Meu pai, que não admitia ficar por baixo rebateu:

- Eu devo pra todo mundo porque você nunca quis por a mão em nada pra ganhar dinheiro. Em nada! Você é outra que só sabe gastar. Se pelo menos soubesse passar roupa, não precisava pagar essa paraíba aí!

E a moça que nos ajudava, humilhada revidou:

- Ninguém tem culpa! Ninguém aqui tem culpa da sua pobreza! Seu velho miserável!

E a conversa foi essa. Meu pai virou um supapo forte na cara da moça, minha mãe tentou intervir, mas a moça, irritada, puxou-lhes o cabelo e só foi parar tudo com a entrada de um vizinho amigo nosso, que ouvira tudo e ajudou a apartar a briga e levou a moça embora. Meu pai ficou com um chumaço de cabelo a menos e um arranhão na cara. Acabou que decidi brincar de outra coisa. Brincaria, naquele momento, de não me aproximar mais de meu pai sem dar a entender querer algo. Nem que esse algo fosse sua atenção, o que de fato eu precisava naquele momento de tédio de brincadeira terminada. Eu sabia sentir a dor da saudade de meu pai e controlá-la, mas causar aquele mal estar danado de ele pensar em nos dar sem poder, bater em gente, quase agredir minha mãe, me causava certa ânsia moral. Quando todos saíram da sala, ficando apenas eu e meu irmão, li as páginas amarelas e percebi alguns quadrados riscados, todos com referência a concerto de coisas. Acho que meu pai procurava concertar as coisas por aí, mas quem precisava de reparos sérios era ele. Desde que o banco negara o empréstimo, ele ficara assim.

Saí para a rua pouco tempo depois de meu pai, que ainda discutiu com minha mãe e bateu forte o portão da frente de casa. Me surpreendi que a brincadeira ainda acontecia, com todos os ninjas descobertos com exceção de eu e meu irmão. Antes tivessem nos descoberto. Recebi um supapo por ser pego. Conversei um pouco com o pessoal. Depois de uns vinte minutos, percebi, lá pra perto da esquina, no bar do Seu Mirante, meu pai sentado no balcão. Minha mãe se irritava um pouco quando ele ia pra lá. Naquele momento a brincadeira de ninja recomeçou, mas dessa vez acordei de um dos meus companheiros olhar meu irmão, e fui. Passo ante passo, por entre as sombras, como um verdadeiro mestre da ocultação e da dissimulação, passei por entre grandes pernas, andei devagar espreitando a parede, até ficar num limite entre o balcão de meu pai e a parede externa do bar e conseguir pelo menos identificar o que ele dizia.

Dentre muxoxos de desprazer, o ouvi maldizendo minha mãe. Se maldizendo. Contando sua história. Estava sozinho no bar. Na companhia amarga de um copo com um líquido incolor, que cheirava acre, e os olhos de ressaca do dono do bar. Dizia coisas de anos atrás. Quando cheguei ele estava no meio de uma prosa:

- (...) e foi quando meu vô chegou aqui, nessa bosta de rua. Isso tudo aqui era de barro batido, tudo fudido. Tinha um campão de futebol lá onde moram os Catalunha. A rua era dele. Ele andava para fazer coisa era no bairro. Aí era fácil pra aquele corno do meu vô fazer dinheiro concertando coisa. Na cidade inteira, não tinha um filho da puta que apertasse um prego. Era tudo nas costas daquele velho. Tinha tanto serviço que meu pai aprendeu o ofício também. Lógico! Era besta aquele outro corno? Sabia que ia herdar os fregueses do velhote. Quando o meu vô morreu, já tinha casa pra cassete nessa rua. Agora tem muito mais. Mas para um terrenão descampado, do jeito que era, naquela época a coisa já fervia. Meu pai corria a cidade como eu corro a rua. Não dava conta. Me pegou pra Cristo. Eu não tive tempo nem de pensar que bosta ia ser na vida. Nunca me deu espaço. Não tinha fôlego. Diante de tantas obrigações, ele me sufocava, sabe?!... Aquele puto tinha era que ter enfiado minha cabeça num saco e me deixado morrer asfixiado. E quando eu comecei a me meninar conheci essa bosta dessa minha mulher. No segundo encontro, a filha da puta me aparece grávida. De mim, lógico. Além de fudido, corno. Aí já é demais. Eu fui levando tudo assim, do jeito que levo essa merda hoje. Os clientes foram minguando, o dinheiro mixando. Agora o que me resta é tomar no cu mesmo. Tenho dois filhos, que só sabem pedir. Pedem pra cassete. Tudo que vê quer. Tenho uma mulher, que não sabe fazer nada. Ah! Ela sabe gastar pra cassete. Ela sabe escolher roupa boa. Ela sabe ostentar a fama de consertador que tinha meu pai e meu avô. E pra ajudar, sai essas lojas que vendem tudo que eu fazia por metade do preço e oferece mão de obra pra montar de graça. O que aconteceu? Tomei no cu! Sanguessugas filhos da puta!

Em uma crise de histeria, só assim saberia classificar aquele gesto, ele arremessou o copo na parede contrária a que eu estava, o estilhaçando em mil pedaços. Levantou. Olhou com jeito de briga para Seu Mirante. Sabia o olhar de briga de meu pai. Pediu outra. Seu Mirante trouxe, murmurando. Terminou de beber o que tinha no copo em um gole só. Pediu para pendurar. Só mais aquela. A resposta de Seu Mirante, velho amigo de favores de meu pai, foi a resposta que guardei na memória, ipsis litteris:

- Só mais essa, bêbado fudido! Vai arrumar o que fazer, vagabundo!

E meu pai saiu de lá cambaleante, sentou na guia com a cabeça entre os joelhos e lá ficou. Tenho certeza que dormiu. Ou chorou e depois dormiu. Parou lá, naquela posição por uns bons vinte, trinta minutos. Eu me cansei e fui embora, com os olhos marejados após ouvi-lo desgraçar todo mundo com palavras que ele sempre nos proibira de usar.

Cheguei em casa, minha mãe estava com rosto vermelho. Os olhos roxeados de choro. Ela, quando chorava, se enchia ainda mais de olheiras. Fui para o meu quarto, que dividia com meu irmão e a ajudante das roupas, quando ela precisava de um descanso no meio da tarde, e dei um soco violento no meu travesseiro. Imaginei que fosse a cara do meu pai. Que vontade de ter tamanho para lhe abrir a cabeça. Na navalha. Como via muita gente fazendo, nas contações de história de televisão e rádio. Tanto filho que matava pai. Tanto pai que matava filho. Sei lá o que me dava na cabeça, mas eu não suportava a ideia daquele homem ter falado tudo aquilo de nós. Com sete anos, eu já entendia muito bem das coisas. Eu já estava bom para me virar. Olhei meu irmão ali dormindo. Dei-lhe um tapa no olho. Ele acordou num pulo.
- Seu viado! Vai dormir que amanhã a gente vai acordar cedo!

Ele me deu um soco na barriga e voltou a dormir. Estava avisado. A partir daquele dia,  olhei meu pai com olhos de iguais. Eu não suportaria mais aquele bêbado xingando todo mundo em casa. Igual em muitas casas da televisão. Eu não suportaria ver ele batendo em minha mãe. Igual batiam nas mães da televisão. Mas meu pai não era de beber. Nem de bater. Era de xingar. Quando menos percebi consegui dormir e acordar no dia seguinte.

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