terça-feira, 24 de março de 2009

CAP IV - MEDO DA MORTE

(ENCONTREI ESTA CARTA ESCRITA NAS COISAS DO MEU FINADO AVÔ. ELE MORREU EM 1999 DE UMA DOENÇA DEGENERATIVA. MINHA AVÓ MORREU DO CORAÇÃO, IGUAL A MÃE DO MEU AVÔ.)


Caminhava devagar mesmo tendo pressa, é que minhas pernas já não respondiam da forma que deveriam. Eu precisava chegar o mais rápido possível, o telefone tocava e ninguém atendia e ela era cardíaca, teve uma recaída a pouco tempo atrás. O desespero nessas horas toma conta de tal forma que nem me lembrei de minha deficiência vivida, de meus pés mancos e tortinhos... porém, eu andava devagar, muito devagar pela gravidade do que minha imaginação levava ao que tinha acontecido.
Passamos por tantas coisas juntos. Duas ditaduras, isso foi o suficiente para nos orgulharmos de vivermos até hoje sempre juntos. Formiguinhas que éramos, ainda tentávamos dar boas mordidas nos pés do homem gigante que era toda aquela estrutura complexa. Bom, ela se estende até hoje se formos reparar... e nos conhecemos no momento em que Getúlio Vargas subiu pela primeira vez. Era novíssimo, ela também, e mineiros. Ah! Mas não nutríamos ódio nenhum pelo rapaz, mesmo porque já vivíamos em São Paulo numa maloca na Mooca, e foi graças a Getúlio, dizia meu avô, que conseguimos uma casinha própria para morar. A família dela conseguiu também, na rua de cima. E as coincidências fizeram nossos corações se encontrarem.
Depois de estarmos bem estabelecidos numa casinha própria, eu me investi como pedreiro, ajudando meu pai. Ela, ajudava os pais também numa fábrica de sapatos. Construimos juntos uma imobiliária, mas no momento em que minha mãe caiu doente, vendemos sem pensar duas vezes todas as casas para mandá-la pra fora e cuidar de seu coração.
Minha mãe morreu. E ficamos com três casas só. Uma pra cada irmão e deu-se uma brigaiada danada na família. Ela sempre do meu lado, e agora eu preciso correr. Eu fui até o centro da cidade comprar laticínios e que luxo o meu, tem uma casa destas pertinho de onde a gente se ajeita, mas eu prefiro caminhar até o centro. Deixei ela sozinha, ela que nunca saiu um segundinho do meu lado. O problema é que eu fico sozinho também...
Ela estava ali, sentadinha na sua poltrona. Minha velha. O ouvido não é mais como era antigamente. Duas ditaduras. A primeira, me deixou manco, a segunda lhe deixou surda. Melhor que não escute, do que escutar mas não conseguir alcançar.

quinta-feira, 19 de março de 2009

CAP III - OLHOS GRANDES, PEIXE PEQUENO

(ESTAVA DEITADO NA CAMA E MEU CELULAR COMEÇOU A TOCAR, AÍ LEMBREI QUE TINHA QUE POSTAR O TEXTO DE HERMETO. MEU VELHO, DESCULPE, MAS NÃO DEU TEMPO PRA FAZER TUA ARTE NÃO. MAS TA AÍ, PALAVRAS FORMAM IMAGENS!)


Começou a dar tudo certo quando passei em um concurso para trabalhar num setor público de São Paulo. Eu gosto de manter tudo no sigilo, então vou dizer aqui que meu nome é Hermeto Coelho, só para ninguém caçar meus registros e conseguir me prejudicar, mas continuando, seria responsável pelo pagamento de funcionários. Exerci com grande presteza este cargo e devido a conquista de confiaça de meu chefe, assumi a chefia no departamento, em que estou hoje fazem três anos. Tudo bem, me informaram que eu serei afastado do cargo pois trai a confiança de meu chefe. Cargo de confiança, desconfiança, volto a cuidar da folha de pagamento amanhã.
Tudo ótimo, foi um confronto ideológico, acontece. Na realidade eu já venho cavando minha própria cova a um bom tempo, pois vinha reparando nas idas e vindas dos meus funcionários. Sempre fui sistemático e com a chefia, a coisa me subiu sabe?! Senti responsável por qualquer gateiro ou gatuna que sabotasse a rotina.

- Olha lá! Desgraçado saiu mais cedo de novo! Vocês estão vendo?

E ainda existia aquelas pessoas sorrateiras, peçonhentas, que consomem a energia de um ambiente com uma simples ligação e como um diabinho lhe tentava ao que você queria atuar. E aí lá ia eu, como uma panela de pressão, enchendo de informação, enchendo de informação e de repente: BUM!

Meu namorado me convidou para um teatro moderno na Paulista. Ele assistiu com uns amigos e disse que tem cenas de sexo explícito. É bom que eu me divirta, mas não conseguirei parar de pensar na minha nova rotina. Amanhã, às sete horas, voltarei a bater a folha de pagamento.

Ah, a desgraçada me substituirá. O capeta de minha consciência, junto com aquela víbora, e um punhadinho de ideologia de mercado. Vocês vejam bem, graças a consciência democrática, igual a todos, ferro e fogo, aqui se fez aqui se paga, Antigo Testamento Bíblico, e eu to na bosta.

Obrigado Vieirinha por expor meus pensamentos. Você é uma pessoa muito bacana. Ele prometeu fazer uma imagem legal misturando meu ofício e meu humor e ainda com algumas figuras do tipo, a pessoa desgraçada que me fez quase perder o emprego. Obrigado, de coração. Ele é um artista, este Vieirinha.

quarta-feira, 18 de março de 2009

CAPÍTULO II - A GRANDE ARTE DE AMAR

(ME DESCULPEM MAS NÃO CONSEGUI FAZER O POSTER DA PEÇA DE ANGÉLICA, UMA VEZ QUE MEUS BASEADOS ACABARAM. - Vieirinha)



Eu estava de mãos dadas com meu namorado quando ouvi um baita dum estrondo. De repente, uma gritaria e um brutucu do tamanho de uma montanha queria acertar a cabeça de um motorista maluco que vinha pela contramão e acertou o caminhão em cheio. Um amigo do brutucu tentou segurá-lo, mas ele não conseguiu e o rapaz que estava meio inconsciente no carro nem se deu conta da origem dos tapas que tomava. De repente umas pessoas curiosas começaram a separar o brutucu e ele se acalmou. Eu e meu namorado ajudamos o motorista maluco e eu percebi que ele sangrava um pouco na testa. Perguntei se era pelos tapas ou pela batida, ele disse que já não sabia de nada e falei se ele não queria ir à delegacia fazer uma ocorrência. Na realidade, ele disse que fugia um pouco de policiais e preferia deixar como estava. Assumiu o erro.
O carro de meu namorado estava próximo daquela rua, mas ele não ofereceu levar o homem ao hospital pois estávamos atrasados. Ele tinha trabalho e eu precisava estudar umas páginas da peça que entraria em cartaz no sábado. Resolvemos deixar assim, outros o ajudariam. Desejamos-lhe boa sorte e continuamos andando.
Já começávamos a ensaiar no palco que seria o espetáculo e cheguei atrasada como sempre. Sentei num puff vermelho, que era parte do cenário da peça e tirei meu jeans. Minha personagem era uma ninfeta que se apaixonaria pelo namorado da irmã. Interessante que nesta peça teria uma cena de sexo explícito que chocaria o público. Não tinha censura de idade, então as mães ficariam horrorizadas e os filhos impressionados em ver o que viam na internet mas nunca ao vivo. O difícil era concentrar para gozar no momento certo. Tudo isto exigia certo cuidado, certa concentração...
Ensaiei três horas. Minhas falas variavam entre frases filosóficas a cerca do que era o relacionamento no mundo moderno e gemidos de prazer pela habilidade sexual do namorado de minha irmã. O interessante é que a minha irmã nos assistia durante o ato e também tinha cenas reais de masturbação. Essas coisas chocariam o público. A intenção era justamente perceber se eles observariam o apelativo ou a obra como um todo. O sexo era um poema dentro da poética toda que era a obra. Bem, nosso diretor era um tanto maluco, podem ter certeza.
Sai do ensaio e fui jantar com o pessoal. Meu namorado me encontraria no bar depois do expediente dele. Nós nos conhecemos numa de minhas peças. O título da peça que ensaiávamos era A Grande Arte de Amar.
Ah, aquele rapaz do trânsito meu namorado acabou ficando com dó e ajudando ele a ir ao hospital. Por coincidência eles moram quase na mesma rua, no mesmo bairro. O nome dele é Vieirinha e ele tem um blog e prometeu colocar algumas coisas sobre a peça com uma chamada bem atraente e pornográfica. Assim as pessoas pensam que trata-se ou de uma obra pornográfica ou de um teatro maluco com idéias novas. Não conheço ninguém que tenha feito teatro com cenas pornográficas, mas acho que isto é inovador, lembrando que é uma coisa que todo mundo faz e a modernidade anda perdendo seus tabus ao falar disso publicamente. Heranças da idade média!
Meu nome é Angélica Lemos, sou atriz e tenho vinte e cinco anos.

terça-feira, 17 de março de 2009

CAPÍTULO I - CONHECENDO VIEIRINHA





Eu sei que eu to errado em ficar fumando maconha a tarde inteira, mas eu não tenho muito lá o que fazer... tinha uma casa do lado que tocava um samba chato, e de vez em quando pra eu não ficar escutando saia por aí, pelas ruas do meu bairro. Um dia me chamaram de canto e falaram, meu querido rapaz gostaria de um cigarro para acalmar tua alma? Eu disse não obrigado, era muito novo para fumar, mas depois de quinze oferecidas comprei algumas pelotinhas e levei pra casa. Minha mãe trabalha, meu pai trabalha, minha irmã trabalha, eu de vez em quando arrumo uns bicos, mas nada muito sério.
Não sou viciado, é que falar de maconha logo no início da um choque. É ilícito né?! Aí surgem os estereótipos, e vocês jamais vão tirá-lo da cabeça. Eu trabalho na noite, e aí surge outro estereótipo. Um dia eu tava indo trabalhar e aqui perto de casa tem uns travestis fazendo a vida e eu parei pra perguntar-lhes se eles conheciam uma entrada fácil para a Castelo, aí a vizinha ficou de olho e achou que eu estava combinando um programa. Bom, tudo bem, isso deve acontecer direto com eles, porque esses caras são sabidos demais. Eles conseguem orientar o ser mais perdido do mundo a pegar um bom atalho, e fora que são bons de papo, gente finíssima. Bem, eu preciso lhes dizer que escrevo por fluxo de consciência, assim é mais interessante, uma vez que eu não tenho muito tempo pra ficar revisando as coisas que faço. É, viu, vocês que me xingam de vagabundo não sabem como minha vida é corrida.
Ontem mesmo eu estava dirigindo em plena chuva com o vidro do carro aberto. Sabe como é, estava um calor desgraçado e mesmo com aquela tempestade, não dava pra ficar de vidro fechado sem ar condicionado. Eu tenho um chevete velho e ele tem um sonzinho bom. Gosto muito das músicas de Seu Jorge, embora acha que o Brasil pra música foi... quer dizer, ta indo, mas a gente começa a ver as pessoas envelhecendo e os novos só nessa de macaquear, de se importar. Eu sou a pessoa mais importada do mundo, se for pensar em ufanismo. Eu não sei o hino nacional, me confundo numas partes, mas também não dá pra dizer que os militares são as pessoas mais brasileiras do Brasil, certo? Eu conheço um que mistura Steinheger com fogo paulista, este sabe conciliar bem o rondó e o forró.
Eu estudei fotografia por um tempão. Participo de inúmeras oficinas literárias e gosto de cinema. Vez ou outra faço uns projetos de arquitetura e amo automação industrial. Ah, adoro ler sobre crítica literária e daria maravilhosas aulas de lingüística. Gosto de concertar computadores também e meu currículo é um tanto vazio. A cidade nos prega algumas peças de vez em quando, eu entrei na entradinha que o meu amigo me orientou mas tinha mudado a mão da rua e acertei um caminhão de feira.
Meu nome é Daniel Vieira, me chame de Vieirinha. Também toco violão, faço versos pra serem musicados. Eu escrevo num blog chamado Abanheem por que esta é a língua que as pessoas de hoje em dia falam... tô certo?


- Ricardo Celestino

SÃO PAULO DE ESTAÇÃO À ESTAÇÃO

Eu estava na quinta-feira passada com um grande amigo de universidade conversando sobre produções literárias e ele me deu uma boa idéia, já utilizada em muitos blogs, a respeito de posts e publicações.

``QUE TAL ESCREVER TODO DIA UM CAPÍTULO DE UMA HISTÓRIA, NO TEU BLOG?´´

É, eu nunca tinha pensado nisso, e aquela questão foi fermentando na minha cachola. Vamos lá, eu vou tentar ser religioso e postar pelo menos duas vezes por semana um capítulo de uma história que já me vem fermentando na cabeça algum tempo. O nome da coletânea de capítulos será São Paulo, de estação à estação, e a estrutura será a seguinte irei postar fotos de nossa cidade (mesmo por que se tiver além de mim que leia este abandonado blog eu duvido que seja de outra cidade) e a partir destas imagens criar uma situação, um drama.

Agora o que deve ser valorizadamente artístico aí não é a história em si, mas as fotos de Diego Garcia, meu fiel companheiro sumido que me doará sem saber algumas coisas de seu trabalho. Depois mostro pra ele o resultado.

Desejem-me sorte!

ps.: adoro o ofício de ser platéia de meus próprios textos, é um bom treino.

Ricardo Celestino

sexta-feira, 13 de março de 2009

ADONIRAN BARBOSA...

Deus Te Abençoe
Adoniran Barbosa
Composição: Indisponível

Vai meu filho
Deus te abençoe
Segue o teu trilho

É o que a minha mãe sempre diz
Todas as manhãs
Quando eu vou pra trabalhar
Eu saio de manhazinha
Volto a noitinha
No aconchego do meu lar

Eu trabalho de pedreiro
Ganho pouco dinheiro
Sou eu e a mulher
Faço todo o sacrifício
Mas minha mãe sempre diz
Tudo o que quiser

Falado "benção filho,
Deus te abençoe filho
Não vai esquecer a marmita, viu!"

quarta-feira, 11 de março de 2009

A POÉTICA BRILHANTE DE SÉRGIO FRUSONI

Pesquisando sobre sociolingüística e as influências do crioulo na língua portuguesa usada no Brasil descobri um interessante poeta de Caboverde, que escreveu seus poemas em crioulo, os traduzindo para o português usado em Portugal e foi objeto de estudo do pesquisador e crítico literário português Mesquitela Lima, e que me foi possível ter acesso a este material através de Simone Caputo Gomes da Universidade Federal Fluminense.

O poeta trabalha sua poética em torno de temas básicos à cultura de Caboverde, tais como a terra, a fome, o drama partir-ficar (chamado terra-longismo, que a meu ver é uma forma de exílio), sem deixar de lado um sentimentalismo, sensualismo, humor, auto-biografismo e a constatação da situação da mulher na sociedade crioula, que não o coloca como um poético panfletário-político.

Observem, leitores, alguns poemas de Sérgio Frusoni, com as análises de Simone Caputo Gomes.

No poema "Mnine d'Sanvicente", Frusoni alude a suas saídas de Cabo Verde, ao tema da emigração-regresso, tão cantado pela Literatura do Arquipélago:

E j'a m' bá e já m' bem;
já m' torná bá e torná bem;
e alí'm lí, de pê na tchôm,

sem um vintem, sem um tstôm,
tâ crê torná bá...
ma pa torná bem...

(Já fui e já regressei;
já tornei a ir e tornei a regressar;
aqui estou, de pés no chão,
sem um vintém, sem um tostão,
a querer ir...
e tornar a regressar...)

A técnica do retrato condensado atinge líricos momentos no "flash" da Pracinha e da Igreja, cartões postais do Mindelo:


Igreja Igreja
Cambra Câmara
Rua da Luz Rua da Luz
Camim d' cimter Caminho do cemitério

Dalí ond'ê que m' tâ Daqui onde estou
m' ti t' oióbe, nha Igrejinha: vejo-te, minha Igrejinha
semp caiadinha d' brónc sempre caiadinha de branco
por dentre e por fóra, por dentro e por fora,
semp tâ figurá sempre a fazer figura,
embora bidjinha! embora velhinha!


Os costumes da terra (como a culinária), as fontes de sobrevivência, a seca e a chuva, a fome, a pobreza, terão expressão nos poemas "Rebêra", "Dia de féria", "Pâ quês pardalim", "Lembróme", "Infancia" e "Calôte , fidje de pôbréza, praga de nôs terra". O Porto Grande e a chuva são focalizados em paralelo no primeiro texto, correlacionando a abundância da água e da lama, tão necessárias ao cultivo, especialmente do milho, à abundância de barcos, tão importante para a economia da ilha:


M' câ sabê de bô, Não sei de ti,
nem de fórça dêsse láma nem da força dessa lama
que bo ti tâ carregá pa mar. que carregas para o mar.
Sô m' sabê cma vapor Só sei que os vapores
já pitá na baía, já apitaram na baía
cma aligria d'ága já rebentá na ar. e que a alegria da água
[á rebentou no ar...]

O milho assado, o rabo de porco e o feijão malaguetado, a cachupa e o pãozinho de milho (midje assóde, rabim de tchuc, fejón malaguetóde, catchupa, pômzinha de midje) inscrevem-se em alguns poemas enquanto pratos típicos da cultura caboverdiana
Em contraste, o sofrimento das crianças por causa da fome é retratado no poema "Infancia", num resgate da memória que persiste no poema "Lembróme".

Lembróme bô perfil: Lembra-me o teu perfil:
nocênte (...) inocente (...)
Ma que já tá trazê, Mas que já trazia
sargide na pêle serzida na pele
dôr ma sufrimênte, a dor e o sofrimento,
sina de nôs pôve... sina do nosso povo...

Fôme cá prêsta! Fôme ê bjôm! A fome não presta! Fome é
[um horror!]

Ma ants fôme do qui pêste ma guérra! Mas antes fome do que
[peste na guerra!]

Fôme ta minguóne, ta incudjine, A fome mingua-nos,
[encolhe-nos]
ma quem ta morrê fête menine, mas quem morre feito
[criança]
ta torná nascê fête menine, volta a nascer feito
[criança]
de lá de barriga de terra! de lá da barriga da terra

No poema "Pâ quês pardalim" Frusoni focaliza a mulher que, depois de desmaiar de fome, preocupa-se com um saco onde levava restos de cachupa e tocos de pão. Interpelada (em português) por que não comeu o farnel, ela diz:

E...e côsa que m' tá levá... E...e o que é que eu levava...
quês...pardalim àqueles...àqueles pardaizi-
[nhos]
-Pardais?
-Sim...
Quês...quês...dôs fidjim...de meu... àqueles...àqueles...dois filhinhos...meus...

A mulher, retratada ora na sua situação de abandono, em virtude da emigração do marido, ora no trabalho, ora em situações humorísticas, ou em sua sensualidade ("marmél de bô pêite/ ta pedí dentada d'ôme" - os marmelos do teu peito/a pedir dentada de homem), constitui um tema constante na obra de Sérgio Frusoni.
No texto "Quand um palavra sô tâ dzê tude côsa" Frusoni ridiculariza a mulher que regressa de rápida viagem a Lisboa com hábitos e até pronúncia diferentes. Uma só palavra condensará a crítica do povo a esse tipo de personagem: PACIÊNCIA!

Um dia nh'Augusta infermêra,
desembarcá tâ bem d'Lisboa: (desembarcou, vinha de Lisboa)
luva, cartêra,
cabel caracolóde
cara pintóde
ta pscá confundi parcença. (procurando confundir a figura)

Um mudjêr q'tava ta passá,
pará tâ spial,
cabá el sucdí cabeçá el dzê:
_Nh' Augusta, nh' armôm, PACIENÇA!.. (ah!, Meu irmão,
PACIÊNCIA!...)

No poema-sketch (técnica recorrente em sua obra) "Pai d'Fidje", o poeta mostra a mulher que reza para que o marido viciado ganhe no jogo, para que seus filhos não passem fome e ela não apanhe:

Spiá pa fidje, quem? Ele? Adéh!
importal lá s'ês t'andá sfarrapóde,
ô sem cmê! Alá'l sentóde
na jôgue, êss ê que'l crê!...

Scompôl? Brigá ma êl? Cónta d' nada!
Remêde ê rezá, cmáde!
E pdí Nossiôr pa fazel ganhá,
pamóde s'êl perdê, êl tíntchóme d'pancada...

A situação quase permanente da mulher só, em virtude do abandono ou emigração do marido, ou do afastamento do filho que parte para trabalhar longe é constantemente referida em poemas como "Sirvice de criada ca tá dá têmpe pa nada" e "A volta":

Sim, êl há d'voltá. Sim, há-de voltar.
E cs'ê qu' m há dzê? E que lhe direi?
Cma m'speral? Que o esperei?
Cma m' sofrê?... Que sofri?

S'el ca creditá? E se ele não acreditar?
Cs' ê qu' m há fazê? Que hei-de fazer?
M' há mostral fidje, Mostro-lhe a criança?
ô m' ha fcá calóde? ou fico calada?

E s' êl bem el stranhá casa; E se ele vem e estranha a
[casa?]
esse nha magréza; esta minha magreza
esse portôm abêrte, este portão aberto,
ma esse lume pagóde?... e este lume apagado?...

E s'stude bem dá cêrte? E se tudo vier a dar certo?
S'el cabá d' entrá se acabar de entrar
êl corrê pa mim?... e correr para mim?
M' há pô tâ tchorá, Hei-de chorar,
ô m' há pô tâ rí?... ou hei-de rir?...

Este belíssimo texto dá a medida da dramaticidade da emigração em terras caboverdianas. Os poemas "Contratóde" (que fala da partida do contratado, escravo do século vinte, por força do regime colonial), "Navì ta bá, navì ta bêm" (Navio que vai, navio que vem), "Na terra strónhe" (Em terra estranha),"Despedida", "Chamada de mar", "Diante de mar de sanvicente", "Volta d'imigrante antigo" enquadram-se no ciclo do terra-longismo (partida/regresso, o querer partir e ter de ficar/e vice-versa), tão bem teorizado por Manuel Ferreira (FERREIRA 1972).
Por outro lado, o chamado da terra, a caboverdianidade, a anti-evasão expressa veementemente por Ovídio Martins em Língua Portuguesa: Não vou para Pasárgada! reverbera em outros textos como "Nha terra", "Cabvêrde", "Pa diante é qu'ê camim":

Ma lì qu' m'nascê Mas aqui é que nasci
lì qu' m' criá! aqui é que me criei!
Êsse mar, êsse cêu, ma êsse tchôm, Este mar, este céu, este
[chão]
Lì qu'm'ha morrê! Aqui é que hei-de morrer!

Idêa d'imbarcá Ideia de embarcar
nunca passóme pâ cabéça (...) nunca me passou pela cabeça
Antes fcá pa lì tâ gozá dêsse mar Antes ficar por cá a
[gozar deste mar]
ma dêsse cêu. e deste céu.

Conhecendo e amando Cabo Verde, é fácil entender o sentimento de Sérgio Frusoni.
NOTAS

1. Considero a tradução literária dos textos para o português como um corpus poético à parte.



Ricardo Celestino

quarta-feira, 4 de março de 2009

CARNAVAL E QUARESMA II

Do carnaval à quaresma,
Dia-a-dia, todo dia,
Até uma, duas, três, quatro, cinco
Vezes ao dia...

Os tambores rufam,
As fantasias brilham.
O ensaio na garagem,
Ouvidos nos sótãos,
Garagens e sótãos e depois
Avenida.

Do violão, rua
Da vida, rua
Da lua, rua
Da rua, ensaio, orvalho, frio, inverno, e depois
Verão, carnaval, festa.

Todo dia, dia-a-dia...

Consuma etapas,
Lufadas de efeitos especiais,
Imagens, paisagens,
Carnaval de alegorias.

E depois

Quaresma de ressacas,
Um bêbado equilibrando-se,
Uma cabeça com enxaqueca,
Um sem-vida exaltado,
A andança que te gera calos
Mas que se recuperam para a próxima passeata.

Carnaval e quaresma,
Roda vai e vem.

(trecho da peça Lis)

PASSAGEM RÁPIDA

Num único dia,

o tédio dos punks,
a revolta dos guerrilheiros,
a alegria dos sambistas,
o bobismo dos emos,
a safadeza dos prostituandos,
a grandeza dos policiais,
a autoridade dos ditadores,
a infantilidade dos desenhos,
a loucura de um louco,
a bebedeira de um bêbado,
o êxtase de um drogado,
o calor de um diabético,
a lucidez de um psicopata,
a mocidade de um idoso,
a velhice de um adolescente,
a castidade de um cafetão,
a promiscuidade de um católico,
a orgia homossexual,
a oferenda espiritual,
a grande fulga pelo anal,
a melhoria de vida a cada dia,
uma melodia preferida,
uma música que deteste,
um cachorro que te morda,
um gato que te arranhe,
uma pomba que lhe marque,
sorte dela que eu não sei voar.

Um sábado e um domingo esperado,
quem sabe vem um feriado?
uma partidinha de sinuca,
um joguinho de futebol,
um caminhar na esteira,
uma grande pança cheia,
um saco gordo, irrugado,
uma barriga flácida e caída,
um inferno e uma vergonha,
uma garota e a margarida,
minissaia e entorpecentes,
o presídio e os presos,
a mulher e o marido,
o matrimônio e o pecado,
o feliz e o individado,
o ladrão e o roubado,
minha vida e tua filha,
sua vida e seu namorado,
e iremos sair juntos neste sábado.

Um patrão e um empregado,
aproveitam juntos a hora do almoço.
Um sol e algumas nuvens,
um dia nublado,
guarda-chuva e meia molhada,
jantar sozinho, acompanhado
de mim mesmo... de mim mesmo...

a solidão, aprendizado,
o medo de morrer só,
a solidão, um mar,
o medo de se afogar,
a solidão um esporte,
o medo da contusão,
a solidão uma economia,
o medo da crise financeira mundial e da perda de todos os meus pertences.
a solidão, me acompanha,

estou só...

a vergonha de artistar,
e a vontade de poetar.